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O que falta na cadeia produtiva do leite nacional para que a integração dê certo?

16/04/2020

Nas últimas décadas tanto a suinocultura quanto a avicultura nacional alcançaram níveis de produtividade e eficiência comparáveis aos dos principais países concorrentes do mundo. Isto foi resultado da uma coordenação em todos os setores e do uso de uma estratégia de produção fundamentada na fidelidade da parceria entre produtores e a indústria.

Empresas privadas e cooperativas estão continuamente avançando nas tecnologias de criação, industrialização e aperfeiçoando da logística de abastecimento dos insumos e dos produtos gerados pelos setores. Também a prospecção de mudanças nos mercados com desdobramentos e eventos passíveis de afetar o fluxo do comércio tem sido uma prática amparada por significativos investimentos em tecnologia da informação.

Desta forma, mesmo enfrentando barreiras comerciais, as exportações brasileiras dos produtos gerados pelas duas cadeias produtivas têm experimentado rápido e sustentável crescimento graças a eficiente articulação entre os dirigentes dos diferentes segmentos do setor ou mesmo entre o setor como um todo e o Governo. A sua organização, fruto principalmente da integração entre unidades de produção primária e o segmento industrial, deu destaque e importância às duas cadeias produtivas no agronegócio brasileiro, abrindo definitivamente os mercados, que vêm sendo conquistados de forma cada vez mais sólida, graças à qualidade do produto e a eficiência no processo produtivo.

integração permitiu uma rápida melhoria nos aspectos gerenciais e nos índices zootécnicos das unidades de produção, trazendo também maior eficiência na logística de distribuição de insumos empregados na produção e de produtos acabados. Não resta dúvida que a integração possibilitou a organização destes setores, trouxe progresso tecnológico, permitiu ganhos de escala, melhor poder de negociação no mercado, aspectos que, no conjunto, imprimiram elevado nível de modernização e competitividade a eles.

Já o setor leiteiro nacional, não é tão bem organizado, apesar dos avanços alcançados na última década. O processo de modernização tem sido lento e a defasagem tecnológica é ainda significativa em algumas regiões.

A questão é: por que a cultura de integração, que funciona tão eficientemente na suinocultura e avicultura, não tem sido adotada em grande escala na pecuária de leite? O que falta nesta cadeia produtiva, principalmente entre os segmentos da produção primária e da indústria, para que um processo similar de integração seja adotado e venha a produzir efeitos positivos similares?

O objetivo deste texto é exatamente iniciar essa discussão, fundamentado nos argumentos levantados.

A integração na suinocultura e na avicultura

Nos sistemas de integração predominantes nas cadeias produtivas de suínos e aves, os produtores disponibilizam o espaço físico, o galpão, os equipamentos, a mão de obra operacional (própria ou contratada) e o aparato gerencial. A indústria integradora fornece os animais iniciais, a ração, os medicamentos e o importante e imprescindível serviço de acompanhamento técnico. Assume ainda a logística, que envolve o abastecimento de insumos para a unidade produtora e a distribuição dos suínos ou das aves acabadas para o abate nos frigoríficos e destes para os pontos de distribuição interna ou para os terminais de carga visando à exportação.

Como parte dos acordos legais entre a integradora e a integrada, compromissos são assumidos. Entre eles estão detalhes pré-definidos das normas ambientais visando à localização e à construção civil, os equipamentos que devem atender a um conjunto de características e padrões de dimensionamento para cumprir normas nacionais e legislações internacionais quanto ao conforto, ambiente e segurança do alimento.

A unidade produtora deve produzir mediante critérios de manejo e coeficientes técnicos mínimos estabelecidos e com metas negociadas com a integradora. Por outro lado, esta assume o capital necessário para sustentar a produção, desde o início da atividade comercial até o momento da geração das receitas oriundas da venda do produto final. Desta forma é possível concluir que a integração entre os dois segmentos envolve um negócio bem sucedido em que a unidade integrada suporta os custos fixos (juros e depreciação do capital investido em espaço, construções, equipamentos e maquinário), manutenções, mão de obra e gestão. A capacidade das partes para financiar os compromissos assumidos fundamenta e dá sustentabilidade econômica ao negócio.

Contextualização para um modelo de integração na pecuária de leite

O primeiro ponto é a própria característica da atividade. A duração do ciclo produtivo é um exemplo, a heterogeneidade dos sistemas, a dispersão geográfica, o número de estabelecimentos que produzem leite, investimentos em terras e equipamentos, mão de obra, complexidade da estrutura gerencial, enfim, praticamente toda a logística difere. Para que o modelo de sucesso na suinocultura e avicultura se repita na pecuária de leite, é necessário passar por muitas adequações, mais profissionalismo, ou seja, repensar o sistema de produção como um todo.

Um segundo ponto é a questão do montante de capital de giro a ser assumido pela integradora para financiar a unidade produtiva integrada. A participação da indústria deve ser reavaliada, levando em conta que os custos fixos relativos da produção de leite são maiores do que na produção primária de frangos e de suínos. Um ponto evidente é a participação do custo de oportunidade da terra. Na produção de leite é de se esperar que tenha um peso maior no custo final. Portanto, a necessidade relativa de investimento em terra é um dos muitos pontos que precisam ser reavaliados e reconsiderados, no sentido de se adequar para implantar a cultura da integração na cadeia produtiva do leite.

Outros pontos devem ser considerados para que o modelo de integração na pecuária de leite tenha viabilidade econômica, como:

  • A produção de leite é uma atividade complexa, envolve muito mais variáveis do que a produção de suínos e aves, tanto no aspecto tecnológico quanto no gerencial. Haja vista que o produtor de leite deve ser também um agricultor que necessita ser eficiente tanto na produção de leite quanto na produção de alimentos, principalmente, volumosos. A integração, se considerada nos exatos moldes praticados para suínos e aves, pode não funcionar tão bem se não levar em conta esta questão. Uma alternativa seria terceirizar a atividade de produção de alimentos.
  • O preço real da terra apresenta comportamento ascendente e deve continuar assim. Trata-se de uma tendência que pode não favorecer ou mesmo desfavorecer os produtores de leite em uma possível negociação de contratos de integração. Uma alternativa é a intensificação da atividade, menos terra e mais produtividade por área por meio de maior investimento em tecnologia. Os sistemas intensivos a pasto, os modernos sistemas confinados “Compost Barn”, são exemplos para maximizar o uso da terra.
  • Normalmente o produtor de leite de baixa escala de produção, compra mal os insumos e vende mal seus produtos. Na integração, os insumos podem ser adquiridos em condições mais favoráveis de preços, favorecendo a indústria ao negociar e adquirir maiores quantidades. Da mesma forma, ao vender o produto este pode ter um valor melhor em função do volume em escala comercial.  O planejamento de longo prazo ganha maior consistência para os dois lados envolvidos na integração.
  • Os sistemas de produção de leite normalmente têm baixa eficiência, com índices de produção e produtividade muito aquém do esperado. A modernização tecnológica da produção de leite pode evoluir mais rapidamente com a verticalização, tendo em vista que os contratos diretos entre os dois segmentos da cadeia produtiva estabelecem metas técnicas para os principais índices produtivos, reprodutivos e econômicos da atividade. Os produtores são pressionados a se modernizarem. De um lado estão comprometidos com as metas negociadas com a indústria e de outro vislumbram melhor resultado econômico para a atividade.
  • Os entraves da disponibilidade e da qualidade da mão de obra são cada vez mais limitantes na atividade leiteira. Deve-se buscar mais automação ou mesmo a robotização das atividades de rotina na fazenda e soluções apoiadas por uma assistência técnica de qualidade, que seria disponibilizada pela integradora. O registro, a organização da informação e suas interpretações produtivas e financeiras, seriam fundamentais para apoiar e orientar decisões em tempo real e ganhar outro padrão de qualidade a partir da assistência profissional especializada, que mediante uma moderna tecnologia da informação e comunicação poderá ser à distância.
  • A atividade leiteira segue há décadas um modelo complexo mas, por outro lado, mais flexível do que os modelos de produção de suínos e de aves. Uma eventual alteração na relação entre os preços dos insumos e do leite, por exemplo, trás reflexos imediatos nas margens da atividade. Dentro de certos limites o produtor de leite pode retirar o pé do acelerador e optar por uma dieta com menos alimentos concentrados, que normalmente são comprados e mais caros e priorizar o alimento volumoso, seja a pasto ou não.

Considerações finais

Já existe uma agroindústria no Brasil testando de forma bastante pioneira uma iniciativa muito próxima à integração. Esta iniciativa deverá ser tomada como estudo de caso para identificar possíveis gargalos e necessidades de ajustes no modelo já existente na suinocultura e na avicultura, de forma a adequá-lo à pecuária de leite. Devem ser também pesquisados os fundamentos que levaram ao insucesso experiências brasileiras anteriores, os erros que poderiam ser evitados e suas possíveis correções. A relação entre produção e indústria praticada em outros países também deve ser estudada, como o caso da China, onde as grandes indústrias e cooperativas de laticínios são também grandes produtoras de leite, e o caso da Nova Zelândia, onde certas atividades na propriedade são terceirizadas. A terceirização de algumas atividades pode ser alternativa viável para o Brasil e para o sucesso da integração, como a recria de fêmeas, a produção de alimentos volumosos, entre outras.

O objetivo é iniciar o debate e a troca de opiniões envolvendo lideranças da cadeia produtiva do leite, sobre a viabilidade do processo de integração no setor. Os especialistas da Embrapa avaliam que o ano que se inicia traz componentes de incertezas, tanto no ambiente interno quanto no externo. Diante deste conturbado ambiente causado pela pandemia de Covid-19, a integração entre os segmentos da cadeia produtiva do leite, em especial produtor e indústria, pode amenizar os impactos negativos em todo o setor. Outras crises anteriores já foram enfrentadas. No ambiente externo, o H1N1 em 2019, principalmente nos países asiáticos, impactou negativamente todo o comércio mundial de commodities agrícolas e continua produzindo efeitos em 2020. Internamente, em 2018, a greve dos caminhoneiros causou graves transtornos para o setor. No entanto, nenhuma crise se iguala a atual. O setor tem se demonstrado ser frágil e mais sensível do que outros do agronegócio nacional. A pergunta que fica é: a integração poderá aumentar a eficiência e diminuir a vulnerabilidade do setor?

Fonte: milkpoint