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Somos (ainda) afortunados

13/05/2020

A crise econômica decorrente da pandemia é algo sem precedentes na história na humanidade. Bastaram 4 meses (até agora) para colocar o mundo de cabeça para baixo. Setores inteiros, de uma hora para outra, simplesmente pararam. Alguns poucos foram poupados (ainda) e, mais poucos ainda, foram beneficiados (por enquanto).

A perversidade da situação se dá pelo fato de que foi uma escolha do destino. Estar na hora errada, fazendo a coisa errada, ainda que de forma competente. De um dia para o outro, seu negócio deixou de ser viável, sem que você tenha cometido qualquer erro terminal.

De repente, qualquer coisa que não fosse alimentos, bebidas ou produtos farmacêuticos, praticamente parou, como aponta uma matéria do dia 09/05 no Estado de S. Paulo. A produção de veículos caiu 99,3% em abril para ficar em somente um exemplo. O que foi produzido em 30 dias no país inteiro equivale a 1 dia de produção na fábrica da Fiat em Betim.

Milhares de pequenos negócios estão sucumbido, sem que nada ou muito pouco se possa fazer. O destino escolheu estes empreendedores (pequenos, médios ou grandes) para passar pela maior provação de suas vidas.

Já se fala em queda do PIB de até 10% neste ano. Pode ser mais, dependendo dos acontecimentos (e eles não nos têm ajudado, com disputas políticas e uma triste falta de liderança e sensibilidade em Brasília). Nos EUA, 20 milhões perderam o emprego, fazendo o desemprego subir de 4,4% para 14,7% em algumas semanas. Talvez a longínqua recessão de 1929 tenha alguma semelhança, com a diferença que dessa vez ainda estejamos longe do fim.

cadeia do leite por aqui também está sentindo. Como temos acompanhado diariamente pelo MilkPoint, as indústrias que abastecem o food service tiveram perdas significativas de mercado, e esse leite precisou ser redirecionado, o que não é algo rápido nem 100% efetivo, com perda de valor ao longo do processo. Os preços no atacado inicialmente subiram, mas depois retrocederam, frente ao excesso de oferta em comparação à demanda em choque e à dificuldade operacional de realocar novos canais de escoamento. A indústria sentiu primeiro, e parte do impacto será repassada aos produtores, cujos preços devem cair ao menos neste mês, situação que se agrava em função dos preços dos grãos, dolarizados, ainda que lá fora tenham caído em dólar. Não serão tempos fáceis e muitos terão dificuldades para manter suas atividades.

Aliado a isso, há o fato de não termos estruturas de suporte financeiro suficientes aos produtores. Como todos sabemos, será difícil sequer socorrer os negócios que simplesmente pararam e as dezenas de milhões de trabalhadores informais e autônomos.

Mas, ainda assim, somos afortunados. Estamos em setor da economia que sofre certamente menos do que muitos outros. Afinal, as pessoas precisam se alimentar, ainda que mudem seu perfil de consumo, procurando marcas mais baratas e produtos de menor valor agregado, o que afeta a geração total de valor no setor, aspecto que evidentemente é transferido para toda a cadeia.

Estamos conseguindo produzir, ter o leite recolhido, processado e vendido. Ainda que empresas específicas estejam passando por grandes dificuldades em função de particularidades do seu portfólio, acesso a mercado e capacidade de caixa, o sistema como um todo se mantém firme, não colapsando. A cadeia do leite como um todo é antifrágil, emprestando aqui o belo conceito criado por Nassim Taleb.

Essa não é uma característica de todo o agronegócio. O setor sucroalcooleiro, por exemplo, assiste incrédulo a uma queda de 50% na demanda de combustível, o que é ainda mais agravado pela redução brutal nos preços do petróleo em função da guerra comercial entre Rússia e Arábia Saudita. O setor de flores, também, sofre perdas enormes com o fim das cerimônias de casamentos, velórios e eventos.

Há, por outro lado, uns poucos “sortudos”, como a citricultura, que viu as cotações internacionais subirem pela percepção de que o suco é saudável, com a vitamina C melhorando a imunidade contra a Covid-19. É incrível como uma crise dessa magnitude muda as percepções e prioridades: antes associado à obesidade e outros problemas em função do teor de açúcar, o suco de laranja agora é o salvador da pátria.

Voltemos ao leite. Por mais que tenhamos um cenário difícil, ele ainda não é muito diferente de outros momentos difíceis pelos quais passamos. É possível que se deteriore, sem dúvida, caso a demanda se retraia ainda mais, ou que os preços no mercado internacional caiam a ponto de tornarem atrativas as importações. Mas a fotografia de hoje ainda não é essa. Após forte queda em abril, os preços do leite spot reagiram. Sinal da falta de leite no campo?

Somos de certa forma afortunados.

A oferta já vinha claudicante antes da crise, com uma produção em dezembro praticamente igual a de um ano atrás. Em sequência, a pandemia encontrou o setor em um momento natural de redução de oferta, entrando na entressafra. Quando normalmente temos importações mais altas, ocorreu o oposto neste ano: câmbio nas alturas e preços que ainda resistem no mercado internacional fazem com que o leite importado chegue aqui a mais de R$ 1,85/litro, em equivalente-leite nacional. Talvez a maior diferença em muitos e muitos anos, se comparado ao preço aqui. A rigor, estamos agora com um dos leites mais baratos do mundo, fruto da desvalorização cambial. As exportações podem ajudar a aliviar a situação, embora esse equilíbrio seja tênue, dada a volatilidade do câmbio e as incertezas sobre os preços mundiais nos próximos meses.

Temos ainda um outro fator de sorte. Trabalhamos com um produto perecível, mas o portfólio de lácteos comercializado no Brasil tem shelf life maior do que o de outros lugares. Nos Estados Unidos, por exemplo, 22% do leite é consumido na forma fluida, pasteurizada. Essa é a razão pela qual produtores estão jogando leite fora por lá, em um cenário em que a oferta supera a demanda em 10% nesse momento (veja esse ótimo vídeo enviado pelo Roberto Jank). Não tem o que fazer com o leite. Para azar dos norte-americanos, a pandemia veio bem na época do spring flush, o período do ano de maior oferta, o oposto do que estamos tendo por aqui. Para piorar, cerca de 16% do leite por lá é exportado, e a queda nas cotações internacionais, somada à valorização do dólar, torna as exportações muito desfavoráveis. No Brasil, além da menor oferta sazonal, temos o leite fluido consumido na forma de UHT, que nos permite maior flexibilidade de estocagem. Ironicamente, se assim o quiser, agradeça ao longa vida!

Não estou dizendo que a situação é boa; longe disso. O custo vai subir pelo dólar e, se a dança entre oferta e demanda não nos for favorável, os preços cairão mais, com margens indo pro espaço. É preciso, no entanto, colocar sob a perspectiva mais ampla do que está acontecendo no mundo e mesmo na cadeia do leite de outros países. Sem dúvida, países como os EUA têm mais recursos para bancar estes momentos, com algum suporte direto aos produtores. Mas até quando, diante de uma economia que caminha para uma forte recessão? Mesmo por lá, muitos fecharão as portas.

Nós também fomos duramente afetados pela crise. Cancelamos um grande evento que faríamos (Interleite Sul, em Chapecó, agora na semana que vem), adiamos outro para 2021 (Dairy Vision, que seria feito em novembro) e assim por diante. Nossa receita foi significativamente impactada, planos foram jogados fora e totalmente refeitos, e a prioridade passou a ser criar novas linhas de receita para manter nosso negócio em condições de superar a crise (temos certeza de que conseguiremos), além de rever custos sem comprometer o longo prazo.

Mesmo tendo sido muito impactado, tenho a humildade de agradecer não ter sido ceifado ao acaso pela pandemia, por estar (por pura sorte) em um setor com baixo risco de colapsar como vem ocorrendo com tantos outros, e por termos condições específicas de mercado que têm ajudado a amenizar o impacto. Embora nem sempre tenhamos a visão mais ampla para perceber isso.

Minha dica nesse momento é fazer a lição de casa como nunca foi feita. Muito provavelmente todos nós temos uma certa dose de acomodação, e esse chacoalhão nos traz a oportunidade única de sermos melhores. Com efeito, não está no controle de quase ninguém sair maior desta crise; mas podemos sair melhores. Não busque culpados externos, olhe para dentro de sua operação, arregace as mangas e corra atrás. São muitas as oportunidades de melhoria (lembrei aqui da frase do Churchill, “nunca desperdice uma crise”).

Fonte: milkpoint