Números explicam tudo, ou quase tudo! Já dizia a Professora Miriam Bacchi, do Departamento de Economia da ESALQ/USP, uma referência em ferramentas econométricas, que “torturando” os números eles sempre acabam mostrando o que queremos que eles provem!
Definitivamente não é caso aqui – não é necessário “torturar” os números para que claramente se perceba o que queremos demonstrar. Este breve artigo pretende mostrar os efeitos das enormes alterações ocorridas do lado da demanda no equilíbrio do mercado lácteo pós-covid, que têm gerado a fortíssima escalada de preços (semelhante à ocorrida depois da greve dos caminhoneiros, em 2018) verificada até o momento.
Efeito auxílio emergencial do governo federal (o “corona voucher”) no mercado
O PIB brasileiro foi, em 2019, de R$ 7,26 trilhões ou algo como R$ 604,7 bihões mensais. No primeiro trimestre de 2020 a queda (antes da covid) foi de 0,3% e, portanto, o número mensal do PIB deve ter sido algo como R$ 602,9 entre janeiro e março deste ano. Com a pandemia, o governo federal implementou uma série de medidas de auxilio direto às pessoas e às empresas – a mais relevante delas até o momento (e responsável por quase 50% destes gastos emergenciais) foi o auxílio emergencial direto de R$ 600,00/mês/pessoa, entre abril e junho, o chamado “corona voucher”. Na tabela 1 vemos um resumo destes números.
Tabela 1. PIB brasileiro e auxílio emergencial da covid. Fontes: IBGE e Senado Federal:
Somente a injeção direta de recursos deste “auxílio emergencial” na economia brasileira (cerca de 50% dos gastos emergências) representou um impacto no PIB brasileiro da ordem de 8,5% no segundo trimestre de 2020! Extremamente significativo!
Agregado a este efeito gigantesco, soma-se a mudança de hábitos de consumo de parte significativa da população. Estamos basicamente dentro de casa, cozinhando mais e consumindo mais lácteos (creme, requeijão e outros itens, muito usados nas refeições preparadas em casa). Adicionalmente, depois de uma situação catastrófica no início da pandemia, pizzarias e outros canais de food service voltam a recuperar parte de suas vendas.
Como resultado, depois de pequeno crescimento no volume de vendas no primeiro trimestre do ano, vendem-se muito mais lácteos no acumulado janeiro a maio em relação ao mesmo período do ano passado (observe o gráfico 1).
Gráfico 1. Vendas (em total valor) de algumas categorias lácteas (janeiro a maio – 2020/2019). Fonte: Nielsen, atualização semanal vendas offline FMCG no Brasil - Impactos da COVID-19 (AS + CC + Farma).
Tomando o caso do leite UHT, o faturamento (volume x preço médio) de vendas do derivado cresceu 17,5% entre janeiro e maio deste ano vs o mesmo período do ano passado. Usando o dado da FIPE para preços do varejo, verificamos que o valor médio do UHT subiu 5,8% no período. Assim, por diferença, o volume de vendas aos consumidores finais de leite UHT cresceu este ano impressionantes 11,1% (este número é referendado pela variação apurada por outros institutos de pesquisa de mercado)! Agregando a esta análise a informação (da mesma Nielsen) que indica que no primeiro trimestre do ano o volume vendido de UHT cresceu apenas 1% em relação ao primeiro trimestre do ano passado, significa dizer que em abril e maio as vendas do derivado no varejo auditado pela Nielsen cresceram quase 28%!
Do lado da oferta, o cenário é extremamente bem descrito pelo artigo dos pesquisadores Glauco Carvalho e Denis Teixeira, da Embrapa Gado de Leite, publicado no MilkPoint Mercado na semana passada ('Baixa disponibilidade de leite eleva os preços na cadeia produtiva'). O quadro descrito por eles resume-se no gráfico 2, que apresenta a disponibilidade per capita de leite até maio deste ano em relação ao mesmo período do ano passado.
Gráfico 2. Disponibilidade per capita de leite – 2020 vs 2019. Fonte: elaborado pelo MilkPoint Mercado com base em dados do IBGE e do MDIC. Utiliza estimativa de queda na produção de leite em abril e maio de 2020 de cerca de 0,6% em relação aos mesmos meses de 2019.
Nos meses de abril e maio de 2020, com uma demanda bastante maior (28% maior no caso do leite UHT, que absorve 20% do leite brasileiro) e com disponibilidade 3,5% menor, não surpreende, portanto, a movimentação de preços ocorrida nos valores praticados da indústria ao varejo, e pelo leite spot. Como no leite ao produtor a informação vigente ainda é aquela do preço pago em maio (pelo leite de abril...), a informação do aumento ainda não chegou, mas certamente chegará para junho e, provavelmente, para julho.
Para finalizar, a pergunta que fica é: até quando vamos com este cenário? O “auxílio emergencial” do governo federal vai até junho e discute-se a prorrogação por julho e agosto, com valor por pessoa inferior ao praticado até agora. Ao mesmo tempo, os volumes da nova (e, este ano, claudicante) safra do sul do país devem começar a aparecer no mercado, talvez mais fortemente em julho, ou provavelmente em agosto. Da mesma forma, e apesar da taxa de câmbio, as importações lácteas voltam a “assombrar” o mercado brasileiro (este um assunto para uma análise específica). Vale aqui o alerta do Marcelo em seu texto, aqui publicado “Andando sobre gelo fino” – ...cuidado com a euforia. A verdade é que estamos andando sobre gelo fino...!
Fonte: milkpoint