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Contratos e a Lei da Integração como alternativa para o setor lácteo brasileiro

20/07/2020

Um das principais questões ao empreender em uma atividade, seja ela na área urbana ou rural, deve ser analisar a sua viabilidade e, dentre outras questões, a segurança jurídica do negócio. O artigo em que abordei os contratos entre produtores e indústrias do setor lácteo brasileiro foi um ensaio sobre as discussões que precisam ocorrer pelos diferentes elos da cadeia produtiva do leite quanto aos direitos e obrigações que estejam de acordo com a lei. Nesse sentido, aqui serão apresentados alguns argumentos latentes do setor e um possível caminho – Lei da Integração – para os contratos formais entre produtores e compradores/indústria do setor lácteo brasileiro.

Há diversos modelos contratuais sendo aplicados no setor lácteo mundial e, no Brasil, algumas organizações vem comercializando com produtores de leite por meio de contratos formais desde meados de 1998, mesmo que de forma tímida, essas iniciativas contratuais ganharam maior adesão a partir de 2010. Atualmente, aproximadamente 10% do leite podem estar sendo comercializado por meio de contratos formais entre produtores e compradores/indústria do setor lácteo brasileiro.

Dentre as cláusulas mais comuns nos contratos estão: à exclusividade da matéria-prima “leite” por parte dos compradores/indústria; o prazo na vigência do contrato; data de pagamento ao produtor; os critérios de qualidade, sanidade, higiene, valorização ou penalização, entre outros. Entre outras cláusulas mais detalhadas ou complexas está a de estabelecer uma metodologia de formação do preço do leite a ser pago ao produtor pelos compradores. A seguir são apresentadas algumas dessas metodologias no Quadro 1.

integração na cadeia láctea

Além das metodologias de formação de preço apresentadas no Quadro 1, há diversas outras e, nos sistemas de integração vertical do setor lácteo brasileiro ou Sistemas de Integração do Leite (SIL) ela pode estar baseada em um percentual da produção. A título de exemplificação de um SIL atual, dentre vários regramentos por parte da integradora estão: o fornecimento dos animais (vacas ou novilhas em final de ciclo gestacional), assistência técnica; exclusividade na matéria-prima “leite” e no fornecimento de insumos e medicamentos, entre outros.

O produtor entra basicamente com a infraestrutura e a mão de obra e deve promover o manejo das vacas leiteiras na sua propriedade, sendo que todas as despesas na produção de leite são de sua responsabilidade, inclusive as questões de ordem trabalhistas, previdenciária e acidentárias. Também não pode adquirir produtos ou serviços que podem ser fornecidos pela integradora, cabendo a ela decidir sobre a gestão dos animais, por exemplo, que serão substituídos, entre outros detalhes.

Ao SIL apresentado o produtor integrado deve repassar toda a sua produção, ou seja, 100% para a integradora, sendo que aproximadamente 12% lhe é descontado a título de pagamento pelo que a integradora lhe forneceu. O contrato é por tempo indeterminado e pode ser rescindido por qualquer uma das partes após aviso prévio de 90 dias. Assim, no contrato ocorre um acordo e o tensionamento sobre os direitos e obrigações das partes.

Mas como e por que a Lei da Integração pode ser uma alternativa ao setor lácteo brasileiro?

A legislação que trata dos sistemas integrados de produção no Brasil foi discutida em âmbito federal desde os anos de 1990 via diferentes Projetos de Lei (PLs). Após muitas sugestões, discussões e negociações com os setores envolvidos, a Lei nº 13.288, de 16 de maio de 2016 - Lei da Integração - finalmente foi aprovada e sancionada. Ela dispõe sobre os contratos de integração, obrigações e responsabilidades nas relações contratuais entre produtores integrados e integradores.

Segundo a Lei da Integração (LI), a integração é entendida como a relação contratual entre produtores integrados e integradores com propósito de planejar, produzir, industrializar e ou comercializar a matéria-prima, bens intermediários ou bens de consumo final.

Conforme a LI, o produtor integrado refere-se à atividade agrossilvipastoril (atividades de agricultura, pecuária, silvicultura, aquicultura, pesca ou extrativismo vegetal) de pessoa física ou jurídica que se vincula ao integrado por meio de contrato de integração. Já o integrador é a pessoa física ou jurídica que se vincula ao produtor integrado por meio de contrato de integração, fornecendo bens, insumos e serviços e recebendo matéria-prima.

Na busca dos setores por maior segurança nas relações visando firmar parcerias que aumentassem a eficiência da produção agropecuária é que a (LI) torna-se um marco regulatório ao estabelecer regras para sistema de integração entre produtores rurais e indústrias. A oferta de produtos agropecuários muitas vezes envolvia disputas judiciais entre o produtor rural e a indústria, devido à falta de uma lei que regulamentasse as relações entre esses agentes, o que acabava sendo motivos de litígios.

Dentre as patologias das atividades agroindustriais geradoras de litígio estão: o fornecimento de insumos; dívidas financeiras; responsabilização em caso de descumprimentos de prazos ou problemas na atividade. Diante dos problemas enfrentados na relação agroindustrial, a lei cria um padrão de contratos que diminui essas divergências e permite a produtores e indústria atuarem em parceria, tornando o processo produtivo mais ágil e eficiente.

Ao contexto, a LI institui mecanismos de transparência na relação contratual, cria um Fórum Nacional de Integração (Foniagro) e Comissões para Acompanhamento, Desenvolvimento e Conciliação da Integração (Cadecs). Assim, a LI e os contratos trazem consigo a missão de perenizar a idoneidade nos processos, desde o insumo, produção, transporte, industrialização, comercialização e, ao final, tem um consumidor satisfeito.

Ao passo em que a LI cria canais de diálogos paritários como a CADEC e o FONIAGRO, ela também institui mecanismos que buscam minimizar assimetrias como o Documento de Informação Pré-Contratual (DIPC), o Relatório de Informações da Produção Integrada (RIPI), as cláusulas mínimas de um contrato enfatizando a transparência na metodologia da formação de preço, entre outros. Ficam visíveis assim os esforços desprendidos na formulação da lei com o intuito de estabelecer equidade nas relações comerciais.

A dinâmica e inter-relações da cadeia produtiva do leite

Entendo ser importante o produtor e os compradores/indústria entenderem de forma didática a complexidade da cadeia produtiva do leite por meio da Figura 1. Existe uma constante interação entre os agentes do ambiente institucional e organizacional, sendo que o tensionamento dessas interações irá determinar o resultado das partes envolvidas.

Figura 1–Estrutura da cadeia produtiva do leite, ambiente institucional e organizacional

integração na cadeia láctea

Fonte: Autor, Adaptado de Zylbersztajn (2000).

Independentemente de qual o elo do setor lácteo você está se visualizando na Figura 1, precisamos entender que todos são importantes e necessários. Antes de o produtor produzir o leite ele fortaleceu o setor que vende todos os produtos, insumos, medicamentos, entre outros (a montante). Depois o produtor vendeu a matéria-prima “leite” (a jusante) que o comprador/indústria transformou em vários outros produtos ou “derivados lácteos” que foram então vendidos ao atacado/varejo até chegar ao alcance do consumidor que vai comprar ou não.

Para produzir essa commodity, o produtor de leite precisou atender uma série de exigências, como por exemplo, as leis, que se encontram no ambiente institucional e também as regras dos bancos, que se encontram no ambiente organizacional. Notem que há um constante tensionamento entre os elos e também uma pressão dos dois ambientes em todos os elos.

Diante do exposto, seguem algumas considerações:

Os empreendedores rurais – produtor(a) de leite – administram um fábrica de produção de leite que funciona 24 horas por dia e, por isso, precisam de apoio, informação, capacitação, motivação, entre outros subsídios, visto que são muitas as habilidades necessárias para produzir uma matéria-prima de excelência que será competitiva no mercado.

Nessa linha de raciocínio, o elo “produtor de leite” precisa de suporte a montante e a jusante visando a sua eficiência que será transferida aos demais elos na forma de um produto com maior qualidade e/ou rendimento, visto que o leite é aproximadamente 12 a 13% de sólidos (gordura, carboidratos, proteínas, sais minerais e vitaminas) e 87% água. Dessa forma, são os sólidos totais que realmente interessam para haver maiores ganhos entre as partes e os elos precisam estar bem integrados para ter um alinhamento coordenado sobre o papel de cada um na cadeia produtiva.

Daí chegamos aos contratos onde são formalizados os direitos e obrigações das partes, sendo que o produtor precisa minimamente entender como funciona o mercado de atuação do comprador que industrializa o seu leite, assim como o comprador/indústria precisa entender minimamente a realidade vivida no dia a dia do seu fornecedor de leite.

Se ambas as partes não trabalharem com transparência, dificilmente terão bons resultados. O leite é como petróleo, dele derivam vários produtos e cada indústria transforma o leite naquilo que ela entender ser mais competitivo ou no que é possível criar a partir da matéria-prima recebida. Isso gera o seu mix de mercado, como por exemplo, (leite UHT, queijos, leite em pó, Iogurte, leite condensado, bebidas lácteas, etc.).

Se o produtor de leite não entender como é composto o mix de mercado e o shelf life dos derivados lácteos fabricados pelo comprador/indústria, será difícil ele entender a oscilação do preço do leite que ele vende. Por exemplo, se um comprador comercializa produtos com maior shelf life (ex: queijo), ele tende a fazer um contrato formal por ter maior previsibilidade no preço e na venda. Já se ele comercializa um produto com menor shelf life (ex: leite UHT), ele tende a não fazer um contrato formal visto que o preço na gôndola oscila muito para ele acertar um valor fixo com o produtor de leite.

Buscando um ponto de equilíbrio nessa equação que envolve a relação comercial no setor lácteo é que foram criados os modelos de contratos apresentados no Quadro1. Os modelos de contratos formais trazem métodos distintos para formular o preço a ser pago ao produtor de leite. Assim, a composição do preço pode estar atrelada a um ou mais indicadores ou variáveis de mercado, entre elas podem estar uma ou mais commodity ou ainda um índice correspondente a um ou mais preços de referência. Com isso, busca-se uma maior previsibilidade e transparência ao considerar as variações do mercado que podem alterar a remuneração de todos os elos da cadeia produtiva.

O modelo de contrato ideal é aquele que melhor atender as necessidades convencionadas pelas partes. Há cooperativas que tem um contrato formal, mas este não contempla cláusulas complexas ou com amplos direitos/obrigações para as partes. Como a cooperativa já tem o contrato social com o cooperado, este seria um contrato extra que visa trazer maior segurança jurídica no relacionamento com seu associado.

Há também organizações/laticínios que compram leite de produtores por meio de um contrato formal mais complexo, com diversas cláusulas que visam contemplar os direitos/obrigações das partes, assim como a questão da metodologia de formação do preço pago ao produtor que é indexada no preço de referência do Conselho Paritário Produtores/Indústrias de Leite (CONSELEITE) ou do Centro de Pesquisas Econômicas da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (CEPEA), ou ainda, uma média dos dois.

O que se percebe é que o setor lácteo está no caminho da profissionalização em diferentes frentes. Os produtores estão realizando investimentos vultosos em infraestrutura, equipamentos, maquinário, novas tecnologias de gestão, entre outros, assim como os compradores/indústria com seus investimentos em plantas maiores, inovações em processos e produtos, novas tecnologias para aferição de qualidade visando à segurança alimentar, entre outros.

Nesse sentido, muitas coisas estão sendo aperfeiçoadas e evoluindo no setor lácteo brasileiro. O que falta avançar são as relações comerciais entre produtores e compradores/indústria que poderiam lançar mão da Lei da Integração (LI), visto que ela traz um aparato jurídico legal que contempla as atividades agrossilvipastoris e foi amplamente discutida desde a década de 90. Assim, com seus devidos ajustes, a LI poderia ser implementada na cadeia produtiva do leite brasileira.

Para isso o Fórum Nacional de Integração (Foniagro), poderia ser representado pelo colegiado da Câmara Setorial do Leite e Derivados - Mapa, as Comissões para Acompanhamento, Desenvolvimento e Conciliação da Integração (CADECs) poderiam ser os CONSELEITEs já estruturados em alguns estados. Talvez as Cadecs pudessem ter atribuições semelhantes as que constam no modelo de contrato 5 do Quadro 1. Entre outras questões positivas da lei, o Documento de Informação Pré-Contratual (DIPC) é extremamente importante para o contrato não ser apresentado aos produtores em sua versão final com uma linguagem técnica ou ser formulado totalmente de forma unilateral.

A LI traz ainda várias outras possibilidades, inclusive dando suporte ao processo de terceirização. De qualquer forma, a simples obrigação do pagamento do preço estipulado na entrega de produtos à agroindústria ou ao comércio não caracteriza contrato de integração, bem como a integração não configura prestação de serviço ou relação de emprego entre integrador e integrado, seus prepostos ou empregados.

O entendimento de produtores e compradores/indústria do ambiente institucional, representado aqui pela LI, e o ambiente organizacional que pode ser representado aqui pelas Cadecs, é extremamente importante para ser visualizada essa interdependência dos elos que são expostos a um constante tensionamento entre si e com o meio.

Assim, a LI proporciona uma base institucional nas relações entre os produtores e compradores/indústria. Por outro lado, os contratos representam uma segurança jurídica, mostrando-se um importante mecanismo legal ao gerar um ambiente de confiança, mitigando o oportunismo, assimetrias de informação e proporcionando maior previsibilidade e transparência que fortalecem os relacionamentos de longo prazo.

Finalmente, os sistemas integrados são a materialização de um modelo que busca a eficiência em todos os elos e surgiu da necessidade de profissionalização das cadeias produtivas que compõe o agronegócio. A expectativa é de que um SIL poderia potencializar e dar mais segurança aos investimentos no setor lácteo, logo, poderíamos pensar em contratos futuros e hedge para produtores e compradores/indústria.  

Fonte: milkpoint