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Cadeia do leite no Brasil: vale a pena fidelizar?

22/07/2020

A cadeia do leite é caraterizada por ter uma relação mais íntima e colaborativa entre os elos produtivos quando comparada a outros setores do agronegócio. Enquanto na agricultura são negociadas safras e na bovinocultura de corte os negócios envolvem lotes de animais sem qualquer vínculo futuro, no setor lácteo os negócios se dão por períodos mais longos.

Essa especificidade do leite se deve principalmente ao fato do produto ser perecível e diário. Não é possível o produtor vender o leite hoje a uma indústria e amanhã a outra sem se preocupar com o que vai acontecer daqui a uma semana. Em momentos de excedentes ele incorreria no risco de não ter a quem vender em determinados momentos. Portanto, assumir todo o leite produzido pelo produtor, é uma contrapartida negocial que a indústria oferece por ter exclusividade na aquisição da produção.

Nessas idas e vindas das cotações de leite e derivados, em muitos momentos o produtor aceita receber menos que fornecedores de outras indústrias esperando uma compensação média em um período mais longo. Da mesma forma, indústrias admitem operar em prejuízo por determinados períodos, tornando a desvalorização dos preços aos produtores mais amena do que a mesma curva em seus derivados.  

O cenário parece ser de uma parceria perfeita, porém o que se vê é uma realidade de conflito permanente. A cadeia da bovinocultura de corte, citando como exemplo novamente, tem muito menos conflitos entre seus elos porque existem referencias econômicas de mercado mais acessíveis a todos. Além de cotações diárias muito conhecidas pelos atores daquele setor, o exercício do mercado futuro ajuda na previsibilidade de preços e na clareza das negociações.

"O cenário parece ser de uma parceria perfeita, porém o que se vê é uma realidade de conflito permanente".

Parece que a conclusão óbvia é que falta uma indexação mais geral ao setor, mas também não é tão simples. Na pecuária de corte, a matéria-prima se transforma em produtos finais de características muito próximas dos padrões originais da matéria-prima. Quando muito, frações da matéria-prima que também têm seus desafios comerciais ligados ao destino das partes menos nobres, mas que são perfeitamente administráveis.

No leite, os produtos finais são variantes muito diversificadas da matéria-prima original. Tem leite que vira leite UHT dois dias depois de produzido ou queijo parmesão que se transforma cento e oitenta dias depois. Uma parte vira leite em pó para virar matéria-prima de novo e outra se transforma em queijo muçarela para ser consumido em pizzas e diversas receitas. A complexidade do setor lácteo faz com que ele não seja representado por um único mercado, mas por vários mercados satélites girando ao redor da complexa flutuação de preços da matéria-prima principal.

Então temos a perecibilidade como um fator dificultador de negociações desvinculadas pelo elo inicial da cadeia, agravada pela grande diversidade de transformação da matéria-prima em vários produtos finais que têm seus mercados praticamente independentes. Esses dois fatores impossibilitam criar referências confiáveis para se tornarem indexadores gerais de preços. Claro que é perfeitamente possível negociar períodos mais longos se utilizando de indexadores como o Cepea por exemplo, mas se essa fosse uma prática geral travaríamos o mercado em uma única cotação devido a constante reindexação provocada por um efeito circular contínuo.

Por essas duas peculiaridades também se torna muito difícil criar um mercado futuro confiável. Para implantar qualquer mercado futuro, é preciso ter um vasto histórico de cotações e estoques, dentre outras influencias menores. Seria fácil fazer isso baseado no leite UHT, na muçarela, ou no leite em pó. O problema é que eles juntos representam pouco mais que a metade do setor e que várias influencias de mercado adicionais incluindo relacionadas ao restante dos produtos tornam as curvas imprevisíveis.

Então qual seria a saída? Como poderíamos evoluir a cadeia para diminuir a energia gasta em uma relação comercial com poucas referências? A resposta na minha opinião é uma única palavra: fidelização.

Claro que nesse momento de preços recordes e de redução ainda maior nas referências, falar em fidelização parece ser um desafio ainda maior. Muitos também irão afirmar que a saída é inversa, o desvínculo e a venda pra “quem paga mais” no momento.

Respeito todas as opiniões, mas a minha é que o mercado de leite é como um boomerang. A intensidade da ação que você toma hoje é diretamente proporcional a intensidade do efeito de retorno. Vender “pra quem paga mais” hoje sem pensar no futuro pode significar ficar totalmente a margem do mercado amanhã, sem opções comerciais em momentos de excedentes. Esse risco está intimamente ligado a perecibilidade: quando sobra produto os preços caem, a indústria não quer volume porque não vai se arriscar estocando e mais da metade do setor opera com produtos frescos.

Uma fábrica de muçarela pode pagar hoje R$ 2,00 porque está vendendo a R$ 25,00. Mas amanhã pode estar vendendo a R$ 14,00 e com capacidade de pagar leite a R$ 1,10. Vender “hoje pra quem paga mais” pode representar ficar fora do mercado logo ali e não cobrir os custos de produção.

"Como poderíamos evoluir a cadeia para diminuir a energia gasta em uma relação comercial com poucas referências? A resposta na minha opinião é uma única palavra: fidelização".

Mas como fidelizar? Fidelizar é só vender sempre para a mesma indústria?

Fidelizar tem que ser sinônimo de parceria. Logicamente existem indústrias que usam a fidelização contra o produtor e pagam menos para aqueles que não representam riscos, mas essa não é uma regra.

O produtor deve valorizar na negociação a intenção de se fidelizar ao parceiro, entendendo que diante de tantas variáveis de mercado irá ganhar em determinado momento e perder em outros, mas que no final estará em uma posição negocial justa e frutífera.

A indústria por sua vez, precisa entender que é mais interessante manter em sua rede de negócio quem não vai deixá-la na mão em qualquer virada de maré e que é sempre melhor trabalhar com quem está conectado na sua cultura.

O desenho de uma relação comercial fidelizada pode ser indexada ou pode não ser, mas deve sempre ser baseada em um princípio de ganha-ganha, onde os agentes procuram a todo momento pesar as dores do outro lado para sempre chegarem a um bom acordo.

Se fidelizar depende de uma boa negociação prévia. As partes devem discutir abertamente como irão proceder, por qual período, o que um espera do outro em momentos de crise, o que um oferece ao outro além de preços. Essa negociação é muito importante porque pode inclusive apontar que as partes não combinam em suas expectativas e que o negócio não deve ser feito.

A parceria mais colaborativa tem seu preço que deve ser proporcional ao benefício que gera a todos os envolvidos.

Fidelizar é o melhor caminho: é justo, previsível e proporciona tempo para que todos cuidem dos seus negócios.

E o tempo é o insumo mais caro de qualquer atividade econômica.   

Fonte: milkpoint