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Cooperação humana e necessária

30/10/2020

A cooperação é a melhor maneira de se viver em comunidade; estruturada em organização cooperativa, torna-se ferramenta de competição no mercado e transformação de perspectivas

“Nenhum homem é uma ilha, um ser inteiro em si mesmo” escreveu John Donne, poeta e padre anglicano londrino, em 1624. Um provérbio africano ensina: “Se quer ir rápido, vá sozinho; se quer ir longe, vá acompanhado”. Todos somos uma parte da humanidade; precisamos uns dos outros; somos gregários. A cooperação nos mantém vivos e fortes. O filósofo e educador Mário Sérgio Cortella nos lembra ainda que “Cada um é responsável por todos”, frase proferida pelo escritor francês Antoine de Saint-Exupéry.

 

Mário Sérgio Cortella, professor e filósofo

Nas reflexões ao longo da vida, nos deparamos com questionamentos do tipo: o que deixo para o mundo; ou qual a minha obra? Para Cortella, a “cooperação é a única forma de fazer uma boa obra de vida”. E garante: “Nós só conseguimos até hoje sobreviver como espécie porque somos e fomos capazes de cooperar. Uma atitude cooperativista, de fato, é a única alternativa que nos garantirá que tenhamos uma vida que, ao ser partilhada, não se esvazie”. Essa tendência natural de procurar apoio e fortalecimento em outras pessoas, no entanto, precisa ser estruturada de forma a gerar benefícios recíprocos, ressalta Cortella. É fundamental que não seja uma forma de cooperação cosmética. “Ela tem de ser de fato autêntica, isto é, benefícios recíprocos e esforços partilhados”.

A escola, por exemplo, aponta o professor, procura lidar com a convivência cooperativada, de modo que, desde a educação infantil, a criança não tenha uma visão apenas centrada no indivíduo, egoísta. E em todas as fases de ensino, cria maneiras dessa convivência acontecer, desde a promoção de jogos cooperativos, em que os grupos se ajudam, não competem; até a divisão adequada de tarefas, para que todos contribuam, sem aquela velha prática de uns alunos realizando o dever, e outros só assinando embaixo. Da mesma forma, a família tem papel fundamental nessa educação para a cooperação. “Não dá para imaginar que basta deixar pessoas juntas que elas cooperarão; haverá uma inclinação a cooperarem, mas que só será efetiva e muito mais densa se houver uma educação sobre os valores da cooperação”.

Não é possível a cooperação sem ética. Oportunismos, sobreposição de interesse individual às necessidades do grupo são atitudes que não cabem. “Uma das bases da cooperação é que a lógica principal seja: não fazemos qualquer negócio. A ética, no trabalho cooperativado, é um esteio central para que as pessoas tenham o ônus e o bônus partilhado”. Essa integridade conta tanto com a convicção interna das pessoas, cultivada por meio da educação, quanto com pressão externa, por intermédio de normas e procedimentos, para que não haja desvios de conduta. Dessa forma, nossa dependência na atividade colaborativa, principalmente em momentos de crise, mantém a máxima: “um por todos; todos por um”.

Mário Sérgio Cortella, ao relembrar um de seus “cartazes eventuais com pensamento para a vida e dúvida metódica”, nos faz uma provocação para refletirmos sobre a cooperação, citando frase do filósofo norte americano Ralph Waldo Emerson: “Torna-te necessário a alguém”. “Ele expressou em uma frase absolutamente curta uma ideia que precisa ser refletida por nós para que, quando terminar esse momento difícil [de pandemia], a gente não sinta vergonha de ter deixado de fazer aquilo que precisava ter feito, ou de ter feito o que não deveria ter feito”.

O melhor de dois mundos

 

Leandro Karnal, historiador

A cooperação, que nos garante a sobrevivência, nos leva ao patamar da organização cooperativa, objetivando-se a conquista de resultados duradouros e sustentáveis nos negócios. O historiador Leandro Karnal afirma: coopera-se para competir. “Eu me organizo em cooperativa para que meu produto tenha chance competitiva no mercado. Assim, coopero na inicial superando o individualismo que pode enfraquecer meu produto e passo a competir como no mais puro modelo capitalista individualista. Esta é a chave do sucesso da cooperativa, pois ela reúne o melhor de dois mundos”. À sociedade atual, Karnal avalia que o cooperativismo representa “uma espécie de modelo de proteção contra crises. Em época de incertezas, o cooperativismo brilha mais”. É uma resposta inteligente à superação de deficiências.

O crescimento dos movimentos para tornar organizações mais conscientes e colaborativas aponta a redescoberta da importância da cooperação, da ética e da sustentabilidade no mundo corporativo. “Quase toda inovação que os RHs do mundo tentam implantar nas organizações privadas derivam, em última instância, de práticas antigas no mundo do cooperativismo. A época dos lobos solitários que passam por cima de tudo e de todos em nome do sucesso é uma época ultrapassada”, assegura. 

Karnal revela-se esperançoso em relação à atual geração na condução a uma sociedade mais justa e cooperativa. Com uma juventude que anseia ser ouvida, participar, posicionar-se. “Há mais ideia de sustentabilidade ecológica e maior preocupação com a ética”, diz. E, ainda que tenhamos episódios de manifestações de ódio, individualismo e até alguma falta de empatia, principalmente nas redes sociais recentemente, a união é superior e promove construções sólidas. “O futuro sempre pertence à confiança audaciosa e ao conhecimento. O futuro é sempre da esperança ainda que, reconheçamos, os derrotados da história sejam muito barulhentos. Mas, o ódio é improdutivo, diminui mercado, corrói o valor da marca e torna a pessoa mais incompetente. É ilógico e o mercado tende a superar coisas ilógicas porque são ineficazes”.

Cooperativismo é sustentabilidade

Assim sendo, cooperativismo implica atitude agregadora. Ações que resultem benefícios mútuos. Como lembrou Leandro Karnal, une-se em cooperativas a fim de vencer uma situação de desvantagem, de competir mercadologicamente. Isso está grafado na história do cooperativismo, estruturado há quase dois séculos para garantir que trabalhadores competissem por melhores condições de vida, competissem pela capacidade de alimentação, de trabalhar e receber remuneração justa pelo labor. Competissem por propósito. “Entre o futuro que queremos e o que teremos, há um espaço às nossas atitudes. Nesse espaço, o cooperativismo é um instrumento para alcançar o que queremos”, diz o consultor em cooperativismo Silvio Giusti.

Quando se fala em cooperativas, fala-se em sustentabilidade e pessoas, defende Giusti. “Não há como crescermos sem nos preocupar com a sustentabilidade, com o social, econômico, e ambiental. Não há cooperativa que tenha sucesso se a comunidade também não estiver em situação de desenvolvimento”. Assim, quanto maior o conhecimento sobre cooperação e cooperativismo, mais fortalecida é a sociedade.

 

Alair Ferreira de Freitas, professor

“Os desafios atuais exigem organizações flexíveis, focadas no relacionamento com seu público e principalmente, sensíveis às mudanças estruturais. Acreditamos que investimentos no capital humano, pesquisa e tecnologia são os meios pelos quais o cooperativismo se manterá no caminho do crescimento sustentado”, avalia Alair Ferreira de Freitas, professor do curso de Cooperativismo da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Freitas projeta que, pós-pandemia, o cooperativismo pode até mesmo conduzir a uma mudança cultural, reformulando o perfil de atividades econômicas e de consumidores, inspirando novos negócios colaborativos, inovadores e sustentáveis.

Há muitos a serem conquistados

Por todos esses predicados, o cooperativismo é um movimento que tende a ganhar reforços. No Brasil, temos cerca de sete mil cooperativas e apenas 7% da população cooperada, segundo dados da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB). Pablo Murta Baião Albino, professor de Cooperativismo da UFV, atribui esse fato à história relativamente recente do cooperativismo no Brasil. O movimento tem ganhado, ao longo dos anos, visibilidade, mas para que amplie sua capilaridade e exerça seu potencial, diz ele, “é necessário que o Estado o assuma como uma agenda estratégica de desenvolvimento; e cooperativas e suas organizações de representação também tomem seus papéis de agentes de desenvolvimento e intensifiquem ações para efetivar os princípios cooperativistas, em especial a intercooperação, a educação cooperativista e a preocupação com a comunidade, ampliando a interação para além de seu quadro social”.

 

Mateus Neves, coordenador da graduação em Cooperativismo

Contribui nesse processo a universidade, ao desenvolver não só capacidades técnicas de seus alunos, mas também formar disseminadores da doutrina cooperativista. “Conectando a atualidade do cooperativismo às tendências da economia e da sociedade, temos conseguido importantes avanços na formação de profissionais cooperativistas de hoje e de amanhã”, afirma Mateus Neves, coordenador da graduação em Cooperativismo da Federal de Viçosa.

A prática da cooperação e do cooperativismo transformador e sustentável

O cooperativismo apresenta inegáveis aspectos positivos gerados pela cooperação. Os exemplos são vários, como a promoção de projetos que envolvem toda uma comunidade, criando uma cadeia entre seus atores; até mesmo a fundação de cooperativa com atuação inédita no país.

O município de Morada Nova de Minas, com cerca de nove mil habitantes, é cercado pelas águas da represa da Usina de Três Marias. Hoje, a cidade tem como um dos principais motores da economia a piscicultura, história que se materializou com o apoio cooperativo. Diante dos desafios da comunidade em evoluir a piscicultura, o Sicoob buscou parcerias com o Sistema Ocemg, Bancoob e Sebrae e assim “nasceu o projeto de desenvolvimento sustentável da cadeia produtiva da tilápia, alcançando desde criadores de alevinos até empresários de graxarias, que processam os restos da produção na extração de farinha e óleos”, conta Ramiro Rodrigues de Ávila Júnior, presidente do Conselho de Administração do Sicoob Aracoop. A partir daí, a competição dos moradenses se transformou em cooperação.

 

Produtor de tilápia no município há dez anos e associado ao Sicoob Aracoop, Alisson de Faria Braga lembra que todos os produtores começaram com poucos alevinos na represa. “Eu iniciei com três mil por mês e hoje estoco 350 mil”. Uma produção que rende 330 toneladas de tilápia mensalmente. Braga ressalta que a mobilização promovida pela cooperativa foi além de conceder acesso ao crédito. Juntamente com seus parceiros, estimulou os produtores buscarem a legalização ambiental do setor, proporcionou cursos e organização cooperativista de toda a cadeia. O grupo planeja agora alcançar metas como lançar uma marca única, realizar compra e venda coletivas e construir uma fábrica de ração.

“É gratificante perceber que fazemos a diferença na vida da comunidade que, com interlocução da cooperativa, uniu esforços em beneficio coletivo”, comenta Ávila Júnior. No município, 80% da população economicamente ativa é associada ao Sicoob. Segundo a Associação Brasileira da Piscicultura (Peixe BR), a produção nacional de tilápia em 2019 foi de 432 mil toneladas. Minas Gerais é o quarto maior produtor da espécie com 36 mil toneladas.

 

Cooperativismo em meio à floresta amazônica

Das águas para a mata. No Pará, em meio à Floresta Nacional do Tapajós – unidade de conservação com área de 527 mil hectares administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) –, com o objetivo de promover o manejo florestal sustentável, a geração de renda e melhoria na qualidade de vida da população local, há 15 anos foi criada a Cooperativa Mista da Floresta Nacional do Tapajós (Coomflona). Marquizanor dos Santos, morador da Flona, está envolvido com a cooperativa desde sua fundação e foi eleito presidente há cerca de um mês. Orgulhoso, garante que o trabalho cooperativo trouxe prosperidade aos moradores da Flona. “Tivemos dificuldades, como qualquer empresa tem, mas avançamos muito e hoje nos sentimos estruturados; temos uma imagem positiva na região”, completa.

Atualmente, são 200 cooperados; 180 trabalham diretamente na cooperativa. Ao menos 50 jovens estão sendo preparados não só para ampliar o quadro de cooperados, mas também para o processo de sucessão. “Contamos com esses que estão vindo para continuarmos a crescer. É uma satisfação ver aqueles que ainda eram crianças quando começamos a cooperativa hoje terem oportunidade de cooperar e trabalhar”.

Em 2013, a Coomflona conquistou a certificação FSC (Forest Stewardship Council), reconhecida internacionalmente e que atesta o manejo florestal ambientalmente correto, socialmente benéfico e economicamente viável. “Com a exploração sustentável, a gente sabe que a biodiversidade continua e é de onde vêm os benefícios econômicos e sociais às comunidades da Flona”, comenta. As sobras da extração da madeira tornam-se móveis, utensílios de cozinha e peças de decoração na movelaria da cooperativa, que emprega oito associados.

Os cooperados da Coomflona, em parceria com a organização BVRio, desenvolvem o projeto Design & Madeira Sustentável, que promove a transmissão de técnicas de construção de móveis e artigos de decoração por designers de mobiliário como Fernando Mendes, Carlos Motta, Claudia Moreira Salles, Julia Krantz, Paulo Alves entre outros. Boa parte da produção é absorvida pelos próprios designers. Peças produzidas na movelaria a partir desse projeto foram expostas na maior feira de design autoral da América Latina, a Mercado Arte Design (MADE), no ano passado. Neste momento de pandemia, a movelaria está com atividades suspensas. “Mas, a gente seguiu recebendo apoio [da BVRio]. Isso contribui muito para nós; pretendemos manter esses laços de cooperação e cada vez mais nos fortalecer”, almeja Santos.

 

Energia solar na favela

Para 84% dos brasileiros, a energia elétrica é cara ou muito cara, segundo pesquisa Ibope e Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel). Produzir a própria energia por meio de placas fotovoltaicas é uma alternativa, mas exige investimentos ainda distantes do alcance de milhares de famílias. No Rio de Janeiro, a Revolusolar está mudando essa perspectiva. Localizada no morro da Babilônia, a cooperativa de energia solar está em fase final de oficialização.

Recursos financeiros escassos adiaram os planos de constituir a cooperativa ainda em 2005, no início do projeto. Mas, características do modelo cooperativista sempre estiveram presentes, como a formação – já são 30 moradores capacitados como eletricistas e instaladores – a educação – difundindo conceitos de sustentabilidade e energia solar às crianças e à comunidade – e o olhar à comunidade – com arrecadação e doação de mantimentos a moradores durante a pandemia. Ações chamadas de Ciclo Solar.

As placas solares já foram instaladas em prédios comerciais importantes à comunidade e comprovaram aos moradores que gerar energia na favela é possível e traz benefícios. A geração de energia compartilhada é a forma econômica e estruturalmente viável de ampliar o acesso às famílias. O grupo trabalha para por em funcionamento o quanto antes a usina cooperativa, cujas placas serão instaladas no telhado da Associação de Moradores da Babilônia. “Ali vamos gerar energia e os créditos que vão ser distribuídos para cerca de 30 famílias, tanto da favela da Babilônia quanto Chapéu Mangueira”, prevê Eduardo Ávila, diretor executivo da Revolusolar. A cooperativa deve ser mantida por pagamentos mensais, uma porcentagem do valor economizado na conta de luz dos moradores.

Valdinei Medina, morador da Babilônia e vice-presidente da Revolusolar, conta que inicialmente a proposta lhe parecia algo muito distante. Agora, não só é palpável como estimula a comunidade a repensar a cooperação. “A cooperativa mostra que soluções ambientais são capazes de partir das áreas pobres”, declara.

O projeto rendeu a Ávila indicação como finalista ao prêmio Jovens Campeões da Terra (Young Champions on Earth), do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), deste ano. “Olho para frente e vejo que é possível enxergar respostas, não só problemas”.

Fonte: mundocoop